quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Espírito hidrófobo


ESPÍRITO HIDRÓFOBO

Esta eu ouvi de uma das mais insuspeitas pessoas com que cruzei os caminhos da vida - o maestro e meu querido compadre Wilson Fonseca, o genial Isoca. Vendo, portanto, o peixe pelo preço da aquisição, sem mexer sequer numa escama do bichinho.
Havia um cidadão, agrimensor e rábula santareno, dotado da­quela curiosidade universal que impele os homens tanto às conquistas como às enrascadas comuns aos afoitos aprendizes de feiticeiros. Inteligente e estudioso, até uma rudimentar asa voadora ele fabricou; mas não apareceu ninguém suficientemente doido para testar o invento... Isso, na década de quarenta...
Nem só de engenhocas, entretanto, vivia o doutor. De repente, deu-lhe na veneta pesquisar o espiritismo: queria porque queria descobrir o caminho das “incorporações” em corpos humanos. Comprou livros, leu, releu, vasculhou, até que se sentiu em plenas condições de pôr em prática os novos conhecimentos. E passou a tomar providências concretas no sentido de experimentar as esquisi­tas teorias... Um obstáculo imprevisto: ao saber das intenções do cônjuge, sua esposa, deu-lhe uma bronca violenta, não admitindo infernais sessões espíritas em seu santo lar. Ele então recorreu aos amigos.
Conversa aqui, explica ali, conseguiu convencer um comerciante libanês a ceder sua casa para o teste inaugural. Tudo combinado, na hora prevista chegou o homem. Garantindo que não possuía poderes mediúnicos, disse ao dono da casa que precisavam de um bom “médium”. embolou o meio do campo, desde que, na residência e nas redondezas ninguém desejava brincar de visagem. Encabulado, ele resolveu convidar o primeiro sujeito que passasse na rua... Sem demora, surgiu um tipo popular, que a cidade conhecia como “Fon-fon”, porque era muito fanhoso. Não foi preci­so conversar demais para fazê-lo topar a parada.
Começou a sessão. O dirigente fez as mágicas aprendidas e, em certo instante, um espírito “baixou” no parrudo “Fon-fon”. O dia­bo é que se tratava, ao que parece, de uma alma galhofeira. bri­guenta, ou muito esfomeada: o “médium” endoidou depressa e se pôs a morder a mesa de cedro macio com violentas dentadas, feito cachorro hidrófobo! Numa das abocanhadas, sua dentadura ficou pre­sa na madeira, tal a potência das mandíbulas... E tentava morder todo mundo, estabelecendo um pandemônio no local!
O libanês, espavorido, berrava:
- Doutor, tira, badrissa, espírito do “Fon-fon”!
Pálido, assustado, escondendo-se como podia, explicava o mestre:
- Eu só aprendi a fazer baixar. Não sei como é que se tira.
Forte como um javali, o comerciante partiu para a ação: deu uma segura “gravata” no “médium” e saiu a empurrá-lo para trás de uma porta. Ali, aos gritos de “vai embora, borgaria”, espremeu raivosamente o incorporado, socando-o muitas vezes contra a parede. Após muito trabalho, “Fon-fon” voltou ao normal, com aquela cara de pateta de quem não sabe ao certo o que aconteceu... Mas logo apanhou sua preciosa e resistente dentadura, escafedendo-se a jurar que nunca mais se meteria numa daquelas...
Ao que se sabe, as habilidades do doutor nas searas espíritas nasceram e foram assassinadas naquela agoniada noite. Ele, coitado, só aprendera a invocar assombrações morde­doras e - o pior de tudo - não sabia como remetê-las de volta aos cafundós do inferno. A sorte de todos é que o troncudo libanês conseguira expulsar o nojento espírito-de-cachorro no berro e no muque. Vade retro! 
(Emir Bemerguy – “Santarenices” – 1975)

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