ESPÍRITO HIDRÓFOBO
Esta eu ouvi
de uma das mais insuspeitas pessoas com que cruzei os caminhos da vida - o maestro e meu querido compadre Wilson Fonseca, o
genial Isoca. Vendo, portanto, o peixe pelo preço da aquisição, sem mexer sequer numa escama do bichinho.
Havia
um cidadão, agrimensor e rábula santareno, dotado daquela curiosidade universal
que impele os
homens
tanto
às conquistas como às enrascadas comuns aos
afoitos aprendizes de feiticeiros. Inteligente e estudioso, até uma rudimentar asa voadora ele fabricou; mas não apareceu ninguém suficientemente
doido para testar
o invento... Isso, na década de quarenta...
Nem só de
engenhocas, entretanto, vivia o doutor. De repente, deu-lhe na veneta
pesquisar o espiritismo: queria porque queria descobrir o caminho das “incorporações” em
corpos humanos. Comprou livros, leu, releu, vasculhou, até que se sentiu em plenas condições de pôr em
prática os novos conhecimentos.
E passou
a tomar providências concretas no sentido de
experimentar
as esquisitas teorias...
Um
obstáculo imprevisto: ao saber das intenções do cônjuge, sua esposa, deu-lhe
uma bronca violenta,
não admitindo
infernais sessões espíritas em seu santo lar. Ele então recorreu aos amigos.
Conversa
aqui, explica ali, conseguiu convencer um comerciante libanês a ceder sua casa para
o teste inaugural. Tudo combinado, na hora prevista chegou o homem. Garantindo que não
possuía poderes mediúnicos,
disse ao
dono
da casa que precisavam
de
um bom “médium”. Aí embolou o meio do campo, desde que, na residência e nas
redondezas ninguém desejava brincar de visagem. Encabulado, ele resolveu convidar o primeiro sujeito que passasse
na rua... Sem demora, surgiu um tipo popular, que a cidade conhecia como “Fon-fon”, porque era muito
fanhoso. Não foi preciso conversar demais para fazê-lo topar a parada.
Começou a sessão. O dirigente fez as mágicas aprendidas e, em certo instante, um
espírito
“baixou”
no parrudo
“Fon-fon”.
O diabo
é
que
se tratava, ao que parece, de uma alma galhofeira. briguenta, ou
muito esfomeada: o “médium” endoidou depressa
e se pôs a
morder a mesa de cedro macio com violentas dentadas, feito cachorro hidrófobo! Numa das abocanhadas, sua dentadura ficou presa na madeira, tal a potência das mandíbulas... E tentava morder todo mundo, estabelecendo
um pandemônio no local!
O libanês,
espavorido, berrava:
- Doutor,
tira, badrissa, espírito do “Fon-fon”!
Pálido,
assustado, escondendo-se como podia, explicava o mestre:
- Eu só aprendi a fazer
baixar. Não sei como é que se tira.
Forte como
um javali, o comerciante partiu para a ação: deu uma segura “gravata” no “médium” e saiu a
empurrá-lo para trás
de
uma porta.
Ali, aos gritos de “vai embora, borgaria”, espremeu raivosamente o incorporado,
socando-o muitas vezes contra a parede. Após muito trabalho, “Fon-fon” voltou
ao normal, com aquela cara de pateta de quem não sabe ao certo o que aconteceu... Mas logo apanhou sua preciosa e resistente
dentadura, escafedendo-se a jurar que nunca mais se meteria numa
daquelas...
Ao que se
sabe, as habilidades do doutor nas searas espíritas nasceram e foram
assassinadas naquela agoniada noite. Ele, coitado, só aprendera a invocar
assombrações mordedoras e - o pior de tudo - não sabia como remetê-las de
volta aos cafundós do inferno. A sorte de todos é que o troncudo libanês conseguira expulsar
o nojento espírito-de-cachorro no berro e no muque. Vade retro!
(Emir
Bemerguy – “Santarenices” – 1975)
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