Engolindo
o derradeiro pedaço de lambuzante pé-de-moleque e limpando a mão melada na
velha calça de mescla, Mingote Pica-Pau, um caboclo atarracado e meio bicudo,
inicia narrativa da aventura que alega ter vivido: um encontro com a formidável
“Cobra Grande” ou “Boiúna”, mito que povoa e aterroriza tantas insônias
amazônicas. Pigarreia e começa:
-
Nós vinha, eu mais o Raimundo Cuiteua, no batelão “Tira teima”, cheinho de
canarana e premembeca. Como vocês sabe, o capim tá cada vez mais escasso e a
gente se atrasemo na viagem. O sol já ia mergulhando ali pras banda do Roçado
Alegre e nós atravessava aquela travessia do Marimarituba, com a vela marmente
se tufando. O vento tinha quebrado muito e nós andava devagar.
Escarra,
dá uma baita cusparada e vai adiante:
- Eu tava comendo na pá do remo
umas fagulha de carauaçu muquiado. Aí o companheiro me cutucou e só fez
amostrar com o dedo, mais branco que arma penada. Eu virei a cara pra ilharga e
o coração velho quis sartar pela buca cheia de peixe e farinha: os faror da
bichona faiscava na buca da nuite, como duas disconforme lanterna de carbureto!
-
Vute! Então a coisa tava mesmo preta, Mingote! - comenta Catinga-de-Mulata. Eu só quero
ver como vocês se desembrulharam da desinquietação.
-
Mais depressa que relampo, nós sentemo a mão no remo e toquemo pra beira! -
continua o varzeiro.
- E
a Boiúna tava muito longe? Indaga Antônio Presidente.
-
Que nada, seu menino! Tava daqui praquela guiabeira! Nós só tinha começado a
travessia e a valença foi essa, porque se a gente já tivesse mais pro meio do
rio, eu não tava aqui contando esse causo.
-
Égua! Eu me arrupeio tudinho! - confessa Zé Potoca.
-
Mas espera aí, sacana, que tu inda não viu nada, promete o empolgado narrador.
- Nós puxemos o batelão até onde nós pôde e se enfinquemo no mato! Fiquemo ali
trepado num galho de marizeiro, moroçoca como o diabo, mas a gente nem sentia
as porquera, porque o medo era disconforme. Nessas hora não tem macho bom.
Chega,
nesse momento, João Bucheiro, com uma garrafa de cachaça. Mingote interrompe a
história e pede: - Me dá aí um trago dessa mardita! Deixa eu molhar o gogó pra
acabar de contar.
Sorve
uns goles no gargalo, enxuga a boca no ombro e retoma a palavra:
- O
animarzão veio tomando chegada e fazia umas onda tão arta que jogaram o “Tira
teima” lá em terra, como se fusse um barquinho mixuruca. A peste bufava como
quinhentus buto junto e os zóio dela deixava dois clarão dentro d'água,
iguarzinho como a lua faz quando foca lá de cima.
Enxuga
o suor da testa e revela: - Só de me alembrar, inda me dá tremedera, e toda
essa varja velha sabe que eu nunca fui fruxo. Nem de visage eu não curro. Mas a
gente pensar que pode ser engulido vivinho... Credo!
-
Eu tô nessa idade e nunca, até o dia de huje, achei macho pra Cobra Grande -
interrompe, solidário, Antão Aquiqui.
Mas
Pica-Pau ainda tem o que contar:
- A
lua tinha saído e nós enxergava direitinho as marmota da eguona da cobra:
Quando ela mergulhava, fazia um funir iguarzinho de terra caída, num
espumaceiro dos diabo! Mas o que nós achamo mais pior mesmo, de parar o
coração, foi os esturro da mardita Boiúna dos inferno. Ela dava, de vez em
quando, uns ronco tão medonho que o Cuiteua me disse, baixinho: - Mingote, se
sangue é fedurento, eu tô muito ferido.
A
turma, tensa, nem sequer consegue rir da pilhéria e o herói do Marimarituba
explica:
-
Coitado do parceiro! Inda mais fruxo do que eu pra essas arrumação que derruba
quarquer caboco, ele não aguentou o tamanho do susto e sujou tudinho o carção.
Pensava que era sangue...
- E
como é que acabou o causo? - interrompe Zé Potoca, impaciente para contar a sua
experiência.
-
Bom. Nós fiquemo ali tremendo e rezando no tuco do pau e a desgraçada fincando
o pé: mergulhava e buiava... Parecia que ela queria brincar de assombrar nós e
não tinha pressa de ir de vorta pra casa. Passou umas três hora naquela
sem-vergonhice, até que arresorveu ir passear. Com o fugo da lua foi que nós
vimo o monstro tudinho brilhando, de pupa à prua.
-
Deu pra carcular o tamanho dela? - indaga Paulo Cascudo.
-
Menino, o bichão foi saindo pra fora, como navio do Lóide que desatraca do
porto da cidade. Deu um bordo e tomou o rumo do meio do rio. Pra ninguém dizer
que eu tô mentindo, eu dou o tamanho da Boiúna por baixo: era uma cobra aí
pruns trinta metro! Por Deus do Céu e Nossa Senhora!
- E
vocês fizeram logo dispôs a travessia? - pergunta Antão.
-
Que nada, mano! - replica o outro. - Nós fiquemo no marizeiro matando moroçoca
e sofrendo frio até o dia butar a venta de fora. Aí nós atravessemo a
travessia, ulhando pra tudo lado. Vute!(Emir Bemerguy - Maromba - 1975)
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