sábado, 1 de dezembro de 2012

A Cobra-Grande

  Trecho do romance "Maromba", que provavelmente será o primeiro livro de meu pai a ser lançado após sua morte:


Engolindo o derradeiro pedaço de lambuzante pé-de-moleque e limpando a mão melada na velha calça de mescla, Mingote Pica-Pau, um caboclo atarracado e meio bicudo, inicia narrativa da aventura que alega ter vivido: um encontro com a formidável “Cobra Grande” ou “Boiúna”, mito que povoa e aterroriza tantas insônias amazônicas. Pigarreia e começa:
- Nós vinha, eu mais o Raimundo Cuiteua, no batelão “Tira teima”, cheinho de canarana e premembeca. Como vocês sabe, o capim tá cada vez mais escasso e a gente se atrasemo na viagem. O sol já ia mergulhando ali pras banda do Roçado Alegre e nós atravessava aquela travessia do Marimarituba, com a vela marmente se tufando. O vento tinha quebrado muito e nós andava devagar.
Escarra, dá uma baita cusparada e vai adiante:
- Eu tava comendo na pá do remo umas fagulha de carauaçu muquiado. Aí o companheiro me cutucou e só fez amostrar com o dedo, mais branco que arma penada. Eu virei a cara pra ilharga e o coração velho quis sartar pela buca cheia de peixe e farinha: os faror da bichona faiscava na buca da nuite, como duas disconforme lanterna de carbureto!
- Vute! Então a coisa tava mesmo preta, Mingote! - comenta Catinga-de-Mulata. Eu só quero ver como vocês se desembrulharam da desinquietação.
- Mais depressa que relampo, nós sentemo a mão no remo e toquemo pra beira! - continua o varzeiro.
- E a Boiúna tava muito longe? Indaga Antônio Presidente.
- Que nada, seu menino! Tava daqui praquela guiabeira! Nós só tinha começado a travessia e a valença foi essa, porque se a gente já tivesse mais pro meio do rio, eu não tava aqui contando esse causo.
- Égua! Eu me arrupeio tudinho! - confessa Zé Potoca.
- Mas espera aí, sacana, que tu inda não viu nada, promete o empolgado narrador. - Nós puxemos o batelão até onde nós pôde e se enfinquemo no mato! Fiquemo ali trepado num galho de marizeiro, moroçoca como o diabo, mas a gente nem sentia as porquera, porque o medo era disconforme. Nessas hora não tem macho bom.
Chega, nesse momento, João Bucheiro, com uma garrafa de cachaça. Mingote interrompe a história e pede: - Me dá aí um trago dessa mardita! Deixa eu molhar o gogó pra acabar de contar.
Sorve uns goles no gargalo, enxuga a boca no ombro e retoma a palavra:
- O animarzão veio tomando chegada e fazia umas onda tão arta que jogaram o “Tira teima” lá em terra, como se fusse um barquinho mixuruca. A peste bufava como quinhentus buto junto e os zóio dela deixava dois clarão dentro d'água, iguarzinho como a lua faz quando foca lá de cima.
Enxuga o suor da testa e revela: - Só de me alembrar, inda me dá tremedera, e toda essa varja velha sabe que eu nunca fui fruxo. Nem de visage eu não curro. Mas a gente pensar que pode ser engulido vivinho... Credo!
- Eu tô nessa idade e nunca, até o dia de huje, achei macho pra Cobra Grande - interrompe, solidário, Antão Aquiqui.
Mas Pica-Pau ainda tem o que contar:
- A lua tinha saído e nós enxergava direitinho as marmota da eguona da cobra: Quando ela mergulhava, fazia um funir iguarzinho de terra caída, num espumaceiro dos diabo! Mas o que nós achamo mais pior mesmo, de parar o coração, foi os esturro da mardita Boiúna dos inferno. Ela dava, de vez em quando, uns ronco tão medonho que o Cuiteua me disse, baixinho: - Mingote, se sangue é fedurento, eu tô muito ferido.
A turma, tensa, nem sequer consegue rir da pilhéria e o herói do Marimarituba explica:
- Coitado do parceiro! Inda mais fruxo do que eu pra essas arrumação que derruba quarquer caboco, ele não aguentou o tamanho do susto e sujou tudinho o carção. Pensava que era sangue...
- E como é que acabou o causo? - interrompe Zé Potoca, impaciente para contar a sua experiência.
- Bom. Nós fiquemo ali tremendo e rezando no tuco do pau e a desgraçada fincando o pé: mergulhava e buiava... Parecia que ela queria brincar de assombrar nós e não tinha pressa de ir de vorta pra casa. Passou umas três hora naquela sem-vergonhice, até que arresorveu ir passear. Com o fugo da lua foi que nós vimo o monstro tudinho brilhando, de pupa à prua.
- Deu pra carcular o tamanho dela? - indaga Paulo Cascudo.
- Menino, o bichão foi saindo pra fora, como navio do Lóide que desatraca do porto da cidade. Deu um bordo e tomou o rumo do meio do rio. Pra ninguém dizer que eu tô mentindo, eu dou o tamanho da Boiúna por baixo: era uma cobra aí pruns trinta metro! Por Deus do Céu e Nossa Senhora!
- E vocês fizeram logo dispôs a travessia? - pergunta Antão.
- Que nada, mano! - replica o outro. - Nós fiquemo no marizeiro matando moroçoca e sofrendo frio até o dia butar a venta de fora. Aí nós atravessemo a travessia, ulhando pra tudo lado. Vute!

(Emir Bemerguy - Maromba - 1975)

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