COINCIDÊNCIA QUE INTRIGA
De vez em quando a
vida nos coloca diante do nariz uma bandeja de formato grotesco, incomum e,
quando olhamos o seu conteúdo, sentimos a cabeça girar, tonta, perdida em
inúteis conjeturas para racionalizar os desafios. E esses quitutes podem ser
produtos de complicadíssimas receitas ou apenas uns bolinhos vagabundos,
fritos em banha de porco, mas, ainda assim, potencialmente capazes de injetar
espantos nas almas. Eis um deles - dos mais simples.
No início deste
século, viveu em Santarém, onde nascera, a senhora Zulmira de Souza Braga,
casada com o coronel Antônio de Vasconcelos Braga, um dos desbravadores do rio
Tapajós. Residiam no solar por ele construído e que, posteriormente, pertenceu
ao lusitano Manoel Gomes de Farias, hoje, patrimônio de herdeiros radicados no
sul do país.
Em 1917 a família transferiu-se para o Estado do Rio de Janeiro, fixando residência em
Niterói. Isoca, o nosso fecundo compositor, teve oportunidade de visitar os
conterrâneos (não os conheci) na capital fluminense, contando-me coisas
interessantes.
A ilustre dama, viúva
havia bastante tempo, morava com as filhas e jamais esquecera sua terra.
Lembrava-se de tudo, comprazia-se em evocar velhas vivências “daquele tempo”,
mas particularmente insistia sobre um detalhe que sempre estava presente em
suas longas conversas: o cata-vento, que fora erguido ao lado de seu palacete,
e que girava lentamente, liricamente, as suas pás, ao impulso das mansas
virações mocorongas, com gemidos inconfundíveis, que ela garantia ainda escutar com toda a nitidez, tantos anos depois... Nas
noites de luar - relembrava a matrona – reunida a família no pequeno coreto que
até hoje existe ali na esquina esquerda do edifício, ouvia, encantada, as
canções de José Agostinho, Joaquim Toscano e outros seresteiros da época. Ela
tinha enorme saudade de tudo, mas principalmente daquele querido cata-vento que
rodava, rodava, embalado pelas refrescantes aragens tapajônicas...
Bem. A 22 de setembro
de 1967 faleceu, em Niterói, a veneranda viúva do coronel Antônio Braga. E aqui
vai o fato extraordinário, ou, caso prefiram um adjetivo menos espalhafatoso,
o fato incomum: pouco mais de vinte e quatro horas após o desenlace da idosa
conterrânea, desabou sobre Santarém uma das
piores
borrascas de que havia registros escritos ou mentais em toda a. área do Tapajós e Baixo
Amazonas... Terrível,
aquela madrugada de vinte e quatro de setembro: o furacãozinho derrubou árvores, barracas, conduziu
para longe boa parte dos telhados de muitas casas, enfim, operou os maiores
escangalhos públicos e particulares.
Pasmem, agora, os
cavalheiros, pois as senhoras desmaiam antes: entre as coisas que ruíram sob o fragor
do vendaval, incluiu-se o sólido cata-vento de dona Zulmira Braga! Caiu com estrépito, danificando o que estava nas cercanias - ele, que fora construído especificamente para ser
acionado pela força dos ventos... Acabou-se junto com sua primitiva proprietária, que nunca o esquecera
e tanto contava a seu respeito!
“Pura coincidência!”, proclamará, superiormente, a maioria... Posso concordar, em princípio...
Mas, que intriga, intriga...
(Emir Bemerguy –
“Santarenices” – 1975)
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