OS “ASSUSTADOS” DE OUTRORA
Apesar da humana e
incorrigível tendência de vivermos bendizendo tempos passados, vítimas de uma
estranha amnésia que nos faz esquecer tantas surras dolorosas que levamos “em
nossa época”, nem tudo, nem tudo - sejamos honestos com a moçada... foi assim tão “risonho e franco” nas décadas
precedentes... É claro que a memória, num generoso
processo
seletivo, filtra impurezas vivenciais, depura as evocações de todo o cascalho
imprestável, tentando, gentilmente, oferecer-nos apenas as pérolas
rebrilhantes daquilo que passou. Mas, numa sincera e desapaixonada análise
retrospectiva, convenhamos que certos hábitos de nossas gostosas e modorrentas cidades,
há trinta ou quarenta anos, constituíam algo de se dar constantes graças a Deus
por terem acabado. Se, de um modo geral, a existência corria com muito menos atropelos
do que nestes neurotizantes dias de hoje, havia umas coisinhas que... Nossa
Senhora! Os tais “assustados” carnavalescos, por exemplo...
A juventude atual não faz a mínima idéia daquelas “brincadeiras”
que, não poucas vezes, degeneravam em sopapos e desaforos envolvendo dezenas de pessoas. Vejamos como funcionava o apreciado divertimento.
Como geralmente só
existia um clube social em cada comunidade, não era possível a utilização
diária da única sede para as quentes folias momescas; tinha-se, então, que
dançar em residências, preferindo-se naturalmente os prédios mais amplos, com
grandes salas para as “cobrinhas”. O problema principal consistia no seguinte:
quase todas as famílias, se fossem previamente consultadas, recusariam a
licença para a festança em seus
domínios, sabendo das dores de cabeça que isso sempre trazia. Diante da
difícil situação, o diabo inspirou aos foliões a engenhosa fórmula dos “assustados”: sem qualquer aviso, invadia-se, de repente, o lar escolhido
secretamente para a noitada, colocando-se os perplexos moradores ante um fato
consumado. O “susto” realmente não era pequeno...
Não custa avaliar os
transtornos decorrentes de tais molecagens coletivas. Terminado o jantar, a
família preparava-se para a diária conversa à porta da rua, em que a vida alheia era
criteriosamente vasculhada... Súbito, como um furacão, o bloco irrompia, casa
adentro, com a charanga puxando
valentemente o cortejo, ao som do trombeteante “Zé Pereira”!
Era um “Deus-nos-acuda”, com os moradores
correndo, atordoados, arrastando móveis, pedindo, aos berros inúteis, que se
tivesse cuidado com a cristaleira, enquanto o pagode pegava embalagem entre
formidáveis gargalhadas gozativas dos felizes invasores!
Entretanto, nem todos
os cidadãos acatavam pacificamente o abuso, e alguns reagiam como homens, até
com violência, para conter a maré montante que transformaria o refúgio
doméstico num pandemônio de muitas horas. Apesar de eu poder referir outras
experiências, pois também minha família, em
Belterra,
foi vítima da cafajestada, prefiro fazer especial alusão a uma encrenca momesca
ocorrida aqui em Santarém, que
se tornou famosa, dado o gabarito dos personagens nela envolvidos.
Uns moços da elite mocoronga dos
anos trinta programaram o “assustado” daquela noite, elegendo, para o ataque, a
ampla residência do doutor Augusto Montenegro, advogado local e homônimo do
célebre político que foi governador do Estado do Pará. Apesar de isoladas
advertências de alguns rapazes mais ponderados, sobre o gênio explosivo do figurão,
nada impediu que o
plano
fosse posto em prática. Contratado o conjunto musical, entre cujos componentes
se incluíam Wilson Dias da Fonseca e Joaquim Toscano, tudo ficou pronto para a
alegre batalha carnavalesca. “Viva o Zé Pereira!” e... vamos lá!
Embora se temesse,
ninguém acreditava realmente que o causídico levasse às últimas consequências
seu protesto contra a pândega. Contudo, quando o esgoelante batalhão transpôs a
soleira do prédio visado, a velha genitora do proprietário caiu no chão, dura,
com uma aparente síncope cardíaca. Louco de raiva, doutor Montenegro apanhou um
imenso revólver, gritando:
- Vai morrer todo
mundo!... Vocês mataram minha mãe, cachorros!... Não sobra nenhum!...
Mas, antes de atirar,
o angustiado filho procurou acudir a ofegante senhora - providenciais segundos
de que se prevaleceram os heróicos foliões para escapar, em furiosas correrias...
Contam testemunhas que saía gente pelas janelas, havendo linguarudos capazes de
garantir que até buraco de fechadura deu passagem a espavoridos súditos de Momo...
Felizmente, a idosa
dama não morreu. Mas, depois do cômico, e quase trágico, sururu, os adeptos
dos “assustados” passaram a agir com um pouco menos de imprudência,
compreendendo que, em certas ocasiões, eles acabavam se “assustando” mais que os próprios
moradores das
casas que escolhiam para as inocentes fuzarcas de fevereiro...
E, por causa de enguiços assim,
às aloucadas e indesejáveis invasões carnavalescas foram rareando, novos
clubes surgiram na cidade, até que se
extinguiram
de
vez (deixando
sempre alguma saudade...), os improvisados arrasta-pés, repondo a paz nas almas dos inquietos senhores
de mansões com amplos espaços...
Também por isso, Deus seja louvado!
(Emir Bemerguy – “Santarenices” – 1975)
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