Maria Flor está
cerzindo umas roupinhas das crianças. Atraída por movimentos de remos forcejando contra a correnteza, levanta os
olhos do trabalho: uma canoa com dois vaqueiros chega à
casa da fazenda.
- Ei, seu Presidente!
- O papai não tá, responde um dos garotos.
- Que é, Pedroca? - interroga a patroa, reconhecendo o caboclo. ~
De cabeça baixa, o reforçado varzeiro comunica:
- Seu Romuardo Bicudo morreu, não faz bocado. Paresque foi besterada no coração dele. O enterro é amanhã e a gente viemo convidar pro quarto.
Espantada com
a brutal notícia, Maria faz o sinal da cruz,
reza em silêncio e promete
que combinará com o
esposo, ao chegar com
Zé Potoca, o jeito de
comparecerem à residência enlutada.
Nesse mundo líquido, cujo único e frágil cordão umbilical com a
civilização é um rádio de pilha, velório - ou “quarto”, como eles chamam - é uma forma de divertimento, quase uma festa.
Sem lazer algum, a braços com uma luta feroz e
diuturna pela simples sobrevivência, os
ribeirinhos transformam a vigília para um defunto em desinibida reunião social
onde nada falta: comilança, beberança, baralho, dominó, mexericos. Por isso, ninguém perde um desses encontros e cada família colabora com
alguma coisa para amenizar a situação dos
herdeiros sem herança. Como ocorre nos puxiruns, leva-se um pouco de querosene, farinha, café, bolacha, velas de cera e cachaça.
Deixando as crianças com
Zé Potoca, lá se vai, à noite, o casal. Apesar de a distância ser pequena, como está ventando muito, preferem usar o barco “Flô das onda II” para vencer os quatro quilômetros da viagem. Como contribuição para o ato fúnebre, levam um
quilo de farinha, açúcar e meio litro de querosene.
Encontram muita gente e pouco choro. Protestante
não é, em geral, espalhafatoso
ante a morte, pois, convicto de que
o extinto está salvo só por causa da fé que possuía, de certo modo exulta quando um irmão se vai, porque ele ganhou o céu antecipadamente, apenas dizendo “Jesus é
meu Senhor”. Após cumprimentar os parentes do
falecido, cada qual se arruma como pode. As
mulheres fofocam na ampla cozinha, enquanto
os homens fazem avaliações de prejuízos na sala da frente. Não há velas acesas e nem se fala
em rosário de Nossa Senhora, desde que o morto era Testemunha de Jeová, não tendo necessidade alguma dessas gorjetas aos santos para
transpor, lampeiro, os
portões do paraíso...
Conversa vai e vem, café aparece e some,
cachaça chega e não dá para
quem quer. A família é
protestante, mas respeita
os costumes da várzea e deixa beber quem
quiser. Começa, então, um animado “sete e meio”, o famoso e fácil jogo de baralho. Formam-se três rodas,
sendo uma na mesa grande e duas no chão, à
luz de resfolegantes “Aladins” - candeeiros de luxo,
usados somente em ocasiões especiais.
- Hum!... Essa curimatá muquiada
tá muito porreta!
- proclama Nhuquinha Catauari, farejando o ar, de
cara erguida. O cheiro da coirona mata a catinga do querosene. Vou tirar a barriga velha
da misera nesse quarto
do Bicudo.
-
Bota mais uma aqui,
Rosa! - pede Miró Sardinha. Hoje eu quero encher a cara pra não me alembrar dos perjuízo dessa
enchente do cão.
E
a temperatura vai esquentando... Saem anedotas
pouco familiares...
As reações evoluem das discretas risadinhas particulares às
estrondosas gargalhadas coletivas... Come-se
enquanto se joga baralho, dominó e conversa
fora. Brinca-se. A noite avança. De repente,
a queixa insultuosa: - Tu tá rubando, seu
curno! - grita
Zeca Tralhoto, a
esfregar as cartas do baralho no focinho de Juca Toró.
Com
várias doses de aguardente no lombo, o ofendido nem pede explicações: planta o braço
no pé do ouvido de Tralhoto, quase tão bêbado quanto ele próprio e... o tempo fecha! Lá
da cozinha, a
mulherada berra:
- Meu Deus!
Respeitem o falecido!...
Não
se respeita nada. Reviram-se as cadeiras, candeeiros
são quebrados. Até o defunto desabou da cama
onde estava, pois, generalizado o conflito
e com ambiente meio escuro, um dos brigões
caiu por cima dele.
Porre como se encontrava, julgou que
fosse um adversário e não teve dúvidas: encheu de murros
as ventas de Romualdo e o fez rolar para o chão, a pontapés!
Quase
todos trocam
coices e poucos tentam acalmar os valentes, pondo
alguma ordem naquela tremenda bagunça. Diversos caíram no rio, à força de empurrões,
tapas ou pisões, e a velha Nica Farofa está de cabeça partida, tal o
entusiasmo de um cascudo que lhe acertaram com um dominó.
Musculosos e abstêmios, os filhos de Romualdo
Bicudo, ajudados por Presidente, gritam, pedem calma, por entre bofetões
e gravatas distribuídos entre os que
precisavam aprender a criar vergonha, ao menos em velórios.
A
muito custo, após dez minutos de pau solto e escoriações de
larguras variáveis, o ambiente retoma a perdida
paz. O defunto readquire
sua dignidade comprometida, providenciam-se curativos. Os mais bêbados são postos em sossego, amarrados
nas canoas, e a liturgia prossegue, entre
novas doses de café, merendas e joguinhos de
dominó e baralho. Ninguém bebeu mais, porque a cana acabou.
A noite já exibe
vergonhosas
rugas de velhice remelenta. Não tardará muito a ceder, emburrada como fedelho de
castigo, o trono a um novíssimo dia de luzes
e de luto, de lutas
sem lucros.
Sepultaram
Romualdo no
cemitério de Paricatuba e ele se enfiou no
túmulo com os óculos na cara esmurrada: era sua
derradeira vontade,
expressa nos estertores da morte. Com
sacrifício, pagara as lentes esverdeadas no crediário da “Ótica
do Povão”, lá na cidade, e não queria deixá-las para ninguém. Talvez pretendesse apreciar melhor o
festim dos vermes sobre suas carnes...
Voltando ao lar, Maria Flor comenta, entre dois bocejos: - Puxa! Esse quarto do seu Romuardo até que não foi ruim. Tem uns tão chato
que dá até vontade de dormir. A briga foi
animada e eu só não gustei de jogarem o defunto no chão.
Antônio concorda, com uma restrição: - É. Eu só não achei mais melhor porque até agora não
sei quem foi
o filho duma égua
que me sapecou um baita beliscão na bochecha da bunda,
na hora da porrada. Quase arranca um pedaço. Vou até fumentar com andiroba e saro
Vute!
- finaliza a companheira. Quem sabe, meu bem, se
não foi o falecido Bicudo. Benzendo-se, explica
a hipótese: -
Ele era tão brincalhão!...
(Emir Bemerguy - trecho do romance "Maromba" - 1975)
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