Mais um trecho do romance "Maromba", de 1975
SUCURI
Entardece. Cansado, o sol se apóia sobre as
copas da mataria azul, reunindo esforços e coragem para o mergulho no
desconhecido, de onde boiará, de manhãzinha, consumando o milagre triunfal de
um novo dia. Entretanto, ainda está bem claro e Antônio Presidente atira a
primeira cuia com água sobre o corpo, num gostoso banho, quando reboa pelo ar o
berro horrível: - Aaaiii!... Papaaaiii!...
- A sucuriju pegou o Tuninho! - denuncia,
espavorida, a irmã de sete anos.
Como um raio, Maria Flor, que costurava, pula
n'água, com a tesoura grande na mão.
- Deixa comigo! - brada, enérgico, o marido,
correndo com o facão afiado. Dá uma trombada na menina, atirando-a longe e
salta quase em cima do monstro que aperta a esperneante criança em suas roscas
fatais!
Com indizível pavor nos olhos esbugalhados,
lutando desesperadamente para se livrar da triturante pressão, ruge a inocência
martirizada: - Aaaiii!... Papaaaiii!... Me sarve, papaizinho!... Meus osso tão
quebrando!... Mamãezinha do meu coração! Aaaiii!...
Os quatro irmãos da vítima fazem tremendo
alarido de medo e compaixão, enquanto se trava formidável combate aquático. Sua
simples visão é suficiente para fulminar covardes ou cardíacos. Maria Flor
conseguiu agarrar a cabeçorra da enorme cobra e tenta introduzir a tesoura em
seus olhos, pondo, na briga desigual, toda a força que lhe dá a alma rasgada de
dor e ódio. Escancarando a bocarra onde se agita a língua bífida, a serpente
procura morder o rosto da valente mãe.
Louco de fúria, Presidente acerta a primeira
terçadada na fera, que logo começa a afrouxar o torniquete assassino, dando
rabanadas violentas que fazem um escachoante tumulto na água suja. Repetindo,
vezes sem conta, os violentos golpes, o alucinado pai termina matando a
sucuriju. Mas, quando retira o menino daquele inferno de sangue e lama,
compreende, com um profundo soluço, que tudo foi inútil: toda fraturada, a
criança acaba de morrer, por asfixia! Recebera o bote fatídico da cobra quando
brincava na escada do alpendre.
Antônio não chora há muitos anos e nem
saberia dizer quando isso ocorreu pela última vez. Todavia, com o garoto morto
nos braços, exausto da luta feroz, o pobre pai, agasalhando o cadáver sobre a
mesa da cozinha, não consegue reter o pranto convulsivo. O rio acaba de lhe
roubar o segundo filho em menos de três meses!
Aplacada a tempestuosa crise emocional que
agitava Maria Flor e postos em calma os chorosos maninhos do falecido, passa-se
a fazer o que a vida (ou a morte?) exige: mandar avisos à vizinhança através do
prestativo afilhado e preparar o velório do pequeno defunto, para, no dia
seguinte, conduzi-lo ao cemitério de Paricatuba. No entanto, fazendo das tripas
coração, Antônio ainda vai substituir o vaqueiro no fornecimento do capim para
a pequena boiada. É que, na várzea, até o sofrimento, às vezes, se torna um
luxo proibido.
Antônio e Maria não dormem um minuto sequer
nessa noite, arrastada e interminável como soro pingando em veia de doente.
Além da mágoa dilacerante de um filho a menos, o caboclo tem seu martírio
ampliado por uma amarga sensação de culpa: acha que deveria ter morto a
sucuriju de qualquer maneira, quando ela pegou o pato. A esposa, porém, já lhe
disse, com o apoio de todos os amigos presentes: - Tira isso da cabeça! Era o
dia dele. Se tu havera de matar essa marvada, o cão mandava logo outra mais
grande do que ela. Foi a vontade de Deus.
É impossível acreditar, contudo, por mais
fatalista que se consiga ser, que o Senhor de todas as misericórdias tenha
desejado mesmo que uma criança morresse tão pavorosamente assim.
Às duas horas da fria madrugada, com os
caboclos jogando baralho, na cozinha, para espantar o sono, começam os dois
cônjuges a conversar, a prestações e em voz baixa, debruçados no parapeito do
alpendre: - Essa nossa vida, Maria, tá mesmo um causo sério - principia,
hesitante, o marido.
Ele nunca mais fumara. Contudo, para acalmar
os nervos esfrangalhados, pita um cigarro que enrolou durante dez minutos, já
sem a prática antiga. Contra os seus hábitos de tagarelice, a mulher continua
muda, a olhar, de mãos no queixo, um ponto invisível na cara da noite escura.
Mais alguns momentos transcorrem. Como quem pensa alto, Presidente fala, de
novo: - Nem que nós havera de se acabar tudinho em boca de cobra ou jacaré, eu
juro que não arredo pé daqui pra canto argum. Para onde, então, a gente podia
se mudar? Pra murrer de fome na cidade, é mais melhor penar na varja. Pelo meno
no verão a gente não véve desinfeliz.
Suspirando fundo, Maria Flor concorda, embora
com alguma grosseria: - Não fica pensando bestera, homem. Eu só ia de vez morar
na cidade se fosse presa por sordado e levada para o xilindró. Aqui a gente
pega bote e dentada de cobra, ferrada de caba, arraia e lacrau. Lá é carro que
mata, é bandido que assarta, é ruindade de patrão e ortoridade que só quer os
pobre como inleitor, engraxate e lavadeira. Tisconjuro!
Dando um tapa no próprio rosto, como
autoflagelação, mas, em verdade, esfarelando um carapanã impertinente, Antônio
confidencia, enquanto atira a bagana do cigarro dentro do rio: - Eu tô com muita
vergonha de ti e dos pirralho, Maria.
Abaixa a cabeça, mas, erguendo-lhe o queixo
com as mãos e fitando meigamente os seus olhos, indaga a esposa, com ternura na
voz: - Mas por que então, meu bem?
Usada com pouca freqüência, a expressão
carinhosa surge no instante psicológico exato. A esperta criatura intuiu
rapidamente a razão determinante do incomum desabafo e se sente na feminina
obrigação de confortar o seu humilhado e másculo companheiro.
Com a dificuldade visível de quem se esforça
querendo vomitar coisa intragável, ele comprime a mão da esposa de encontro ao
próprio coração e diz, num sussurro: - Eu churei na ilharga de vocês. E churei
como criança. Macho não chora, Maria. Só lagrima.
Lutando para não dar continuidade ao teimoso
pranto que já lhe ensopa os olhos amarelados, Maria Flor aperta-lhe fortemente
a mão calosa. Não pode dizer nada, ainda. Mas assim que consegue engolir o nó
da garganta, segreda-lhe ao ouvido: - Não pensa mais nisso, meu amurzinho.
Vergonha é robar e ser marvado. Tu só fez churar a morte tão triste do nosso
Tuninho. - Detém-se, engasgada. Mas logo completa, num só fôlego: - Eu inda te
quero mais bem dispôs dessa desgraça. Sei que tu é macho pra cachurro, mas tu
não deixou de ter um coração bom e amuroso dentro do peito.
E, de rostos unidos, os dois emocionados
caboclos ali ficam, durante longos minutos. Na cozinha, o jogo de baralho
prossegue, animado, a até uns palavrões já saíram por lá. É preciso, porém,
interromper o doce colóquio para servir mais uma rodada de café quentinho aos
participantes do velório. Como foi uma criança que morreu, não se bebe cachaça.
Só em vigília de adulto os varzeiros gostam de tomar umas duas ou três.
(Emir Bemerguy - "Maromba" - 1975)
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