A MEDICINA DE MAMÃE
Sempre que presencio as dengosas reações dos meus
filhos ante a ingestão dos geralmente coloridos e saborosos remédios atuais,
logo sinto a memória retroceder no tempo e me ponho a recordar vivências
marcantes da longínqua meninice. Adoecer, nos dias de hoje, é incomparavelmente
menos martirizante do que outrora, quando, às vezes, só o medo de bárbaros
tratamentos restituía magicamente comprometidas saúdes.
Vermífugos... Purgantes... Hoje, a criança nem
sequer precisa saber que está sendo medicada contra lombrigas: a mãezinha
adiciona ao leite, à refeição, um produto que ali se dissolve sem alterar o
sabor do alimento e irá exercer poderosa ação sobre os parasitas intestinais.
Naquela época, porém, a escola podia até ser “risonha e franca”, mas os
tratamentos eram carrancudos e confundiam franqueza com grosseria.
Duas vedetes então pontificavam na área dos
purgativos: o óleo de rícino ou mamona e o quenopódio, cada qual mais
intragável do que o outro. E as duas pragas se reuniam para formar uma
terceira: a “Panvermina”. Pois era esta que Mamãe preferia - uns comprimidos
redondos, enormes, moles, que, ao menor contato com os dentes, soltavam seu
conteúdo na boca, deixando um gosto de inferno, de alma penada. Agora, o
ritual, a cuja simples evocação meu rancoroso estômago ainda protesta, com
ânsias de vômito.
Eros e eu - os dois filhos maiores - tomávamos o
odioso remédio em todas as férias de fim de ano, tivéssemos ou não cara de quem
hospeda vermes nas estranhas. Às quatro horas da madrugada éramos acordados de
um sono dormido a prestações, tal o pavor do negro dia que nos aguardava. Creio
que a última noite de um condenado à morte não deve ser muito mais agoniada...
Mamãe aparecia já com o vidro de “Panvermina” em
uma das mãos e uma tigela de horroroso chá fumegante na outra. Eu sempre tinha
o privilégio de ser guilhotinado primeiro, supostamente pela maior docilidade,
mas, de fato, porque mais intenso era o medo da digestiva palmatória. Fazendo o
sinal-da-cruz, fechava o nariz e ia engolindo as terríveis bolotas (seis, em
média), ajudando-as a descerem com uns forçados goles de chá. Afinal,
friccionando o ventre para conter os espasmos expulsivos, estava pronto para
assistir à melhor parte do espetáculo: a “panverminação” de meu pobre mano que,
até hoje, trinta e tantos anos volvidos, só toma qualquer pílula em perigo de
vida. E vale a pena um parágrafo.
Eros fazia o maior dos escangalhos para ser
medicado. Enquanto para mim aquilo tudo se apresentava como um “purgatório” em
pleno sentido, ao seu infantil julgamento a tortura da madrugada assumia as
fantasmais proporções de um enlouquecedor inferno. O rebelde guri estragava
meia dúzia de cápsulas para deglutir uma só, mordendo-as, espatifando-as na
boca semi-cerrada. Isto, por entre uma alegre banda de música de pescoções e
chineladas gradativamente numerosos; as bordoadas iam se tornando mais
vigorosas e frequentes na exata proporção em que o chá esfriava e a
“Panvermina” era desperdiçada. Ele só engolia mesmo as petecas diabólicas
quando papai deixava de fumar, nervoso, na rede vizinha e evoluía dos ralhos
inofensivos aos enérgicos bolos de palmatória. Que drama, ó Deus!... E ao
terminar a suarenta agonia anual, o Sol já saíra, tanto ela se prolongara; às
vezes, entretanto, até as auroras se antecipavam, curiosas, para verem que
confusão era aquela...
Só isto? Coisa nenhuma! Agora, serenados os ânimos
e reposta a ordem no campo de batalha, vinha a não menos temível “dieta”: vinte
e quatro horas trancados num quarto calorento (golpes de ar eram um perigo...),
tomando chá e caldo de galinha! Jamais entendi as misteriosas razões do severo
resguardo, mas desconfio que os antigos tentavam agredir os vermes por todos os
lados, privando também os indefesos bichinhos de luz e ar... Eis uma das definitivas
consequências de tão insólita medicina: Eros e eu nunca mais, vida a fora,
suportaríamos chá de qualquer espécie e muito menos caldo de galinha! Ah! Não
existe nada como essas tão saudosas fixações da “infância querida que os anos
não trazem mais”!
Pode-se indagar, agora: mas valia mesmo a pena
toda essa aflitiva encrenca? “Meninos, eu vi!” - diria o austero poeta: vi, com
estes olhos que não gostaria que a terra comesse tão cedo, vi sadias lombrigas
de quase meio metro desabarem, céleres, dos envenenados intestinos para menos
pestíferos urinóis! Mas, por vingança, deixavam sempre - os demônios! - um
estoque de larvas para as diversões das próximas férias...
Faz uns dez anos. Estava eu numa farmácia da
cidade, quando ouvi claramente uma senhora humilde perguntar à balconista se
ainda vendiam “Panvermina”. Saí, apavorado, vendo e ouvindo súbitas visagens:
mamãe apareceu com a tigela e o amaldiçoado vidro e presenciei nitidamente os
esperneantes berros de meu valente mas sempre derrotado irmão.
(Emir Bemerguy - Enquanto eu me lembro -1975)
Kkkkk minha mãe também tomava e até hoje ela fala desse pesadelo . A mãe dela colocava esses comprimidos dentro de uma rodela de banana .
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