terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Coincidência que intriga



COINCIDÊNCIA QUE INTRIGA

De vez em quando a vida nos coloca diante do nariz uma bandeja de formato grotesco, incomum e, quando olhamos o seu conteúdo, sentimos a cabeça girar, tonta, perdida em inúteis conjeturas para racio­nalizar os desafios. E esses quitutes podem ser produtos de complica­díssimas receitas ou apenas uns bolinhos vagabundos, fritos em banha de porco, mas, ainda assim, potencialmente capazes de injetar espan­tos nas almas. Eis um deles - dos mais simples.
No início deste século, viveu em Santarém, onde nascera, a senhora Zulmira de Souza Braga, casada com o coronel Antônio de Vas­concelos Braga, um dos desbravadores do rio Tapajós. Residiam no so­lar por ele construído e que, posteriormente, pertenceu ao lusitano Manoel Gomes de Farias, hoje, patrimônio de herdeiros radicados no sul do país.
Em 1917 a família transferiu-se para o Estado do Rio de Janeiro, fixando residência em Niterói. Isoca, o nosso fecundo compositor, teve oportunidade de visitar os conterrâneos (não os conheci) na ca­pital fluminense, contando-me coisas interessantes.
A ilustre dama, viúva havia bastante tempo, morava com as filhas e jamais esquecera sua terra. Lembrava-se de tudo, comprazia-­se em evocar velhas vivências “daquele tempo”, mas particularmente insistia sobre um detalhe que sempre estava presente em suas longas conversas: o cata-vento, que fora erguido ao lado de seu palacete, e que girava lentamente, liricamente, as suas pás, ao impulso das man­sas virações mocorongas, com gemidos inconfundíveis, que ela garantia ainda escutar com toda a nitidez, tantos anos depois... Nas noites de luar - relembrava a matrona – reunida a família no pequeno coreto que até hoje existe ali na esquina esquerda do edifício, ouvia, encantada, as canções de José Agostinho, Joaquim Toscano e outros seresteiros da época. Ela tinha enorme saudade de tudo, mas principalmente daquele querido cata-vento que rodava, rodava, embalado pelas refrescan­tes aragens tapajônicas...
Bem. A 22 de setembro de 1967 faleceu, em Niterói, a veneranda viúva do coronel Antônio Braga. E aqui vai o fato extraor­dinário, ou, caso prefiram um adjetivo menos espalhafatoso, o fato incomum: pouco mais de vinte e quatro horas após o desenlace da idosa conterrânea, desabou sobre Santarém uma das piores borras­cas de que havia registros escritos ou mentais em toda a. área do Tapajós e Baixo Amazonas... Terrível, aquela madrugada de vinte e quatro de setembro: o furacãozinho derrubou árvores, barracas, conduziu para longe boa parte dos telhados de muitas casas, enfim, operou os maiores escangalhos públicos e particulares.
Pasmem, agora, os cavalheiros, pois as senhoras desmaiam antes: entre as coisas que ruíram sob o fragor do vendaval, incluiu-se o sólido cata-vento de dona Zulmira Braga! Caiu com es­trépito, danificando o que estava nas cercanias - ele, que fora construído especificamente para ser acionado pela força dos ven­tos... Acabou-se junto com sua primitiva proprietária, que nunca o esquecera e tanto contava a seu respeito!
“Pura coincidência!”, proclamará, superiormente, a maioria... Posso concordar, em princípio... Mas, que intriga, intriga...

(Emir Bemerguy – “Santarenices” – 1975)

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