FORDLÂNDIA
1928. A Amazônia inteira se
alvoroçava ante a realidade que tantas esperanças vinha semear em almas afeitas
a uma enervante rotina - eterno dia seguinte da mesma coisa, frustrante véspera
de coisa nenhuma. Em toda a vastíssima circunscrição geográfica - de Santarém a
Itaituba, de Cametá a Porto Velho - quase nada havia, em termos de empregos
para os moços, além de escassas vagas atrás de poeirentos balcões. Mas, por que
tanta efusão de entusiasmo?
Henry Ford, o magnata do
automóvel, fundara, à margem direita do rio Tapajós, no Pará, um núcleo
experimental que estava atraindo gente dos mais longínquos pontos do país:
Fordlândia, no município de Itaituba. O ricaço americano conseguira, do governo
Washington Luís, por um prazo contratual de noventa e nove anos prorrogáveis, a
concessão de duas imensas glebas. E, através de cientistas prodigamente pagos
(ele mesmo nunca chegou nem perto do Brasil), o célebre industrial decidira
cultivar selecionadas seringueiras naquelas terras virgens. Com o látex obtido,
pretendia abastecer suas fábricas de carros, numerosas já nessa recuada época;
Belterra, a outra comunidade com idênticos objetivos, seria implantada somente
oito anos mais tarde.
Vencido, pois, como tantos
outros jovens, pelo fascínio das notícias que se irradiavam do novo Eldorado,
meu pai, Vidal Macedo Bemerguy, aos vinte e um anos incompletos, também veio
conferir as douradas informações: largou tudo, inclusive (provisoriamente) a
noiva, e desceu de perto para abrir a boca ante as maravilhas que os americanos
estavam realizando. Chegou, viu e ficou, ao comprovar que não havia exagero nas
narrativas lidas ou escutadas: tudo funcionava muito bem, com requintes de
organização, detalhe que particularmente encantou o curioso rapaz, que desde
cedo revelava antipatia por qualquer coisa confusa, sem ordem.
Era natural, entretanto, que o
excitante garimpo sem ouro agisse como poderoso chamariz para toda espécie de
aventureiros. Só no primeiro ano de implantação, já havia cerca de quatro mil
operários de todas as procedências na fervilhante vila. Apesar das cautelas com
que compunham seus quadros funcionais, os “gringos” não conseguiram evitar que
lobos se infiltrassem no meio de cordeirinhos. E foram esses que, sem mais nem
menos, num injustificável ato de molecagem coletiva, lideraram, um dia, a séria
desordem que passaria a ser posteriormente lembrada como “Quebra-panelas”. Sob
o pretexto injusto de contestarem a qualidade das refeições que lhes eram
fartamente servidas no amplo restaurante da empresa, os arruaceiros fizeram
desabar aflição e desassossego sobre toda a população. Contida, porém, a irresponsável
baderna, duro foi o ajuste de contas: contava papai que muitas centenas de
trabalhadores se viram sumariamente despedidos, recebendo o que por lá se
conhecia como “descarga” - o bilhete de irreversível dispensa.
Este breve capítulo inicial das
memórias que me dispus a compilar, objetiva apenas definir o cenário onde
começou a se desenrolar
a fieira de minha vida. No dia de Natal de 1931, por conveniências de ambos,
mamãe e papai casaram-se por procuração e, vindo residir em Fordlândia, a jovem
esposa rapidamente se adaptou às novas circunstâncias. Afinal, tudo ali era
novidade, progresso, estimulante fuga do invariável ramerrão itaitubense, onde,
de bocejo em bocejo e de fuxico em fuxico, os compridos dias se arrastavam, sem
pressa, como se o próprio tempo ficasse meio entorpecido, abobalhado com a
paulificante repetição de gestos e palavras. Até as alvoradas e os crepúsculos
pareciam ser pintados pelos mesmos anjos, com as mesmas cores de sempre. Até o
vento soprava teimosamente na mesma direção.
A súbita quebra da insípida
sequência - como pedrada desferida em taça de cristal - era um encanto e uma
injeção de entusiasmo na gente tapajônica.
(Emir Bemerguy – “”Enquanto eu me lembro” – 1975)
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